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Bruno Rocha e o Jantar “Endògenos” dedicado ao Tremoço
Bruno Rocha sempre apreciou imenso a potencialidade gastronómica do tremoço.
Dando-lhe uma especial satisfação – à semelhança de chefes como Leonel Pereira, José Avillez, Louis Anjos, Vítor Areias, João Simões ou até Magnus Nilsson – conseguir reinventar uma leguminosa tradicionalmente vista como um produto menor e tantas vezes desprezada mesmo no universo da alta cozinha.
Lembro-me de que já o trabalhava no EMO do então Tivoli Victoria, numa altura em que ainda não existia este blog.
E recordo também um memorável pastel de tremoço, intenso e com uma acidez incrível, que Bruno Rocha apresentou num jantar muito especial organizado por Louis Anjos no Suites Alba.
Porém, ao vir para Lisboa, Bruno Rocha levou ainda mais longe o seu gosto pelo tremoço!
E em 2016, logo na primeira carta que assinou para o FLORES DO BAIRRO do Bairro Alto Hotel, deu-lhe um enorme destaque, ao colocá-lo no couvert e fazendo-o brilhar num refrescante e cítrico dip de influências latino-americanas.
Tendo Bruno Rocha agora, na última carta, desenvolvido esse conceito inicial e apresentado um conjunto de grande nível composto por três elementos completamente distintos: o tremoço inteiro, em salmoura; um creme de limão, bastante ácido; e ainda o tremoço fermentado, com iogurte e sal, num puré que incluiu coentros, malagueta e lima.
Fez, pois, todo o sentido ter sido Bruno Rocha o chefe escolhido pelo “Endògenos” para o jantar dedicado ao tremoço.
E mais ainda porque Bruno Rocha, encarnando o verdadeiro espírito do projeto criado por Nuno Nobre e António Alexandre de fomentar a ligação entre o produtor e o cozinheiro, esteve, durante os três meses de preparação do evento, em permanente ligação com a D. Maria da Conceição, produtora de tremoço de Miranda do Corvo, onde o chefe foi pessoalmente e cuja família aliás esteve também presente esta noite no FLORES DO BAIRRO.
O resultado foi, pois… um grande jantar!
Que cruzou a tradição com a modernidade!
E que se revelou também ser um autêntico… festival de tremoço!
Couvert – Pão de tremoço, centeio e lúpulo. E foie gras de galinha | Para começar, um excelente pão, escuro e amargo, feito na cozinha do FLORES DO BAIRRO. Porém, ao contrário do que seria de esperar, não houve dip de tremoço. Com efeito, Bruno Rocha resolveu inovar e, para conjugar com um produto pouco nobre como o tremoço, escolheu outro produto igualmente pobre: o fígado de galinha. Tendo Bruno Rocha explicado que neste primeiro momento os tremoços foram utilizados no seu estado natural, o que já não irá acontecer nos pratos seguintes, em que os tremoços serão sempre trabalhados previamente de alguma forma.
Amuse-bouche – O “marisco dos pobres”, gamba rosa, picle de mexilhão e mizuna | Uma criação muito complexa… e completa! Em que Bruno Rocha começa por dar ao tremoço um sabor doce. E depois junta-lhe o sabor a mar da gamba rosa e do mexilhão; a acidez da laranja, em cujo sumo a gamba marinou quatro minutos, e também do picle; o adocicado do pistácio; e o picante da mizuna. Bem como o salgado de um… sal de tremoço! E ainda o perfume do endro!
Sal de tremoço | O sal de tremoço feito por Bruno Rocha no Bairro Alto Hotel… para temperar o amuse-bouche.
Entrada – Gelado de tremoço, “ombro” de porco num croquete, kimchi e pepino | Registo minimalista em que temos a proteína, um acompanhamento, um verde e o molho. Mas depois cada um dos elementos é brutal! O croquete, feito com a carne e o caldo do “ombro” de porco, é muito intenso de sabor e apresenta uma textura densa, dado ter imensa carne. O acompanhamento é na verdade um extraordinário gelado de tremoço – Bruno Rocha contou ainda, aliás, que desde o início tinha a ideia de fazer um gelado… para a parte salgada da refeição; com efeito, disse, um gelado de tremoço na sobremesa seria demasiado óbvio. Depois temos ainda o pepino. E o molho coreano Kimchi. Porém, na cabeça de Bruno Rocha este prato conceptual divide-se antes em duas partes: dois campos intensos (croquete e Kimchi) e dois campos frescos (gelado de tremoço e pepino). Tendo o chefe sugerido que a degustação fosse feita alternando-os sucessivamente! Incrível como um mero croquete consegue integrar um conjunto tão estimulante!
Peixe – Tremoço fermentado, bacalhau, couve-coração e amêndoa | A base do prato é o extraordinário bacalhau do “Bacalhau ‘à Brás’ do Bairro”, que é curado no FLORES DO BAIRRO com a alga kombu. Ao qual Bruno Rocha junta tremoços fermentados, num processo que lhe ocupou vários meses de testes e estudos, e ainda o contrastante sabor doce do milho. Bem como couve-coração, amêndoa e ainda um falso “Pil Pil”. Muito bom!
Carne – Tremoço salgado, codorniz, cereja e molho de massa azeda | Com a codorniz, tremoços salgados! Depois, o doce de duas variedades de cereja, a encarnada e a branca, as quais Bruno Rocha serviu salteadas! E ainda um molho de massa azeda que o chefe do FLORES DO BAIRRO explicou ser feito com… pão alentejano! Grande momento, que trouxe igualmente à memória as famosas cerejas bêbadas de Bruno Rocha e também a sua utilização no jantar dos tártaros!
Quinta do Cardo Vinha do Castelo tinto 2014 | Para acompanhar a codorniz, Catarina Stella propôs, e serviu a uma ótima temperatura, o vinho que melhor expressa o terroir da Quinta do Cardo, na Beira Interior! Um extraordinário varietal de Tinta Roriz! Cujas uvas são provenientes da vinha mais alta da quinta, a 780 metros de altitude! Da vindima de 2014 e com 22 meses de estágio em barrica, é marcado por uma assombrosa frescura, sobressaindo as notas de resina de pinheiro e de bosque!
Sobremesa – Os tremoços, os amendoins e as cervejas | Para terminar o “Endògenos” dedicado ao tremoço, Bruno Rocha apresentou uma original sobremesa que tem na base um bolo de amendoim e celebra as três bebidas preferidas dos cozinheiros do FLORES DO BAIRRO para acompanhar tremoços... e amendoins: Panaché, Cerveja Preta e Somersby.
17.º Endògenos | A dupla do projeto “Endògenos” de valorização de produtos autóctones – o empresário Nuno Nobre, da Nuno Nobre Consultoria, e António Alexandre, chefe executivo do Lisbon Marriott Hotel – com Bruno Rocha, chefe do FLORES DO BAIRRO e responsável por este brilhante 17.º jantar “Endògenos”, dedicado ao tremoço.
Bairro Alto Hotel | O abraço entre os dois responsáveis pela colocação do Bairro Alto Hotel na agenda gastronómica da cidade de Lisboa: o Diretor-Geral Jorge Cosme, sempre um excelente anfitrião, e o Chefe de Cozinha Bruno Rocha.
FLORES DO BAIRRO | A equipa de cozinha e de sala do FLORES DO BAIRRO na noite do “Endògenos” dedicado ao Tremoço: Catarina Stella, Umar Baldê, Sara Silva, André Santos, Andreia Marques, André Costa, Rui Carreira, Manuel Pires, Bruno Rocha.
Muitos parabéns a todos!
Fotografias: Marta Felino e Raul Lufinha
FLORES DO BAIRRO
Bairro Alto Hotel, Praça Luís de Camões, 2, Lisboa, Portugal
Chef Bruno Rocha
Bruno Rocha & Paulo Matias
Há momentos assim, de pura felicidade, em que é a Gastronomia que nos traz a História e a Identidade, seja de um povo, de uma região ou até de uma localidade.
Como sucedeu no passado fim de semana, em que dois conhecidos chefes da capital – Bruno Rocha, do FLORES DO BAIRRO, no Bairro Alto Hotel, ao Chiado, em Lisboa; e Paulo Matias, do PORTO DE SANTA MARIA, no Guincho, em Cascais – se juntaram para ir ao interior centro de Portugal fazer um jantar interpretativo… da vila e da serra da Lousã!
O qual decorreu no Palácio da Viscondessa do Espinhal, edifício onde atualmente funciona o Palácio da Lousã Boutique Hotel e cujo início da construção remonta ao final do século XVIII, tendo ficado para sempre associado às Invasões Francesas. Aqui se instalou o Marechal Massena, sendo também famoso o episódio da apressada fuga do comandante das tropas napoleónicas ao saber da derrota no Rio Ceira quando se preparava para jantar… tendo o triunfante Duque de Wellington entrado na Lousã e comido no Palácio a refeição que Massena deixou para trás!
A lindíssima sala do restaurante A VISCONDESSA do Palácio da Lousã
Dando-se a circunstância de este jantar interpretativo da Lousã, feito por Paulo Matias e Bruno Rocha, ter sido ainda mais interessante porquanto os dois chefes – para além da opção por fazerem pratos únicos, criados especificamente para este jantar depois de contactarem com a realidade local – tiveram ainda abordagens interpretativas da essência da Lousã completamente distintas… as quais, precisamente por isso, se complementam!
Paulo Matias foi buscar o lado mais nobre da Lousã, com toda a sua riqueza e opulência, repleto de influências francesas.
Já Bruno Rocha optou pela vertente mais pobre da Lousã, ligada à economia de subsistência e aos produtos da serra.
Duas formas bem diversas… de ver a mesma realidade!
Jantar interpretativo da Lousã
Assim, depois dos aperitivos, servidos nos salões nobres do Palácio pelo chefe anfitrião Miguel Silva, do restaurante A VISCONDESSA do Palácio da Lousã Boutique Hotel, e que foram acompanhados pelo Porto Branco Bulas, marca de um produtor com duas quintas no Cima Corgo, na margem direita do Douro…
… passou-se à lindíssima sala de jantar, onde, com uma seleção de pães, se começou por provar o excelente azeite biológico Olmais.
Tendo chegado depois o primeiro prato da noite, uma entrada de Paulo Matias.
Em homenagem ao luxo e ao fausto afrancesado da Lousã, o sabor decadente e sedutor do foie gras!
Ravioli de foie gras.
E também um envolvente aveludado de sardinha. Com efeito, no interior do país o peixe fresco era um privilégio; e, mesmo assim, a sardinha acabava por ser um dos mais fáceis de obter.
Estando depois todos os elementos do prato do chefe do PORTO DE SANTA MARIA ligados através do toque suavemente picante do pimento de Espelette.
Tendo ainda o rico prato de Paulo Matias a textura crocante da lula e, também, da avelã caramelizada em manteiga noisette, com raspa de lima no fim.
Por cima, uma telha estaladiça de quinoa desidratada... e alga nori fumada!
Excelente!
Ravioli de foie gras e Espelette / Aveludado de sardinha e lula crocante [Paulo Matias]
Depois, a primeira incursão de Bruno Rocha pela Lousã num prato de peixe… que também tinha carne!
O atum – curado, fumado e seco. Primeiro, marinado em sal, açúcar e limão; seguidamente, após a cura, fumado com madeira de carvalho; ficando a secar durante 8 horas; e sendo depois servido... ralado!
Mas, por baixo, esconde-se a língua de vitela, que Bruno Rocha faz passar por uma salmoura líquida durante uma semana e depois deixa cozer lentamente, servindo-a em lascas muito finas!
Tendo por companhia a batata da Lousã. Que o chefe do FLORES DO BAIRRO apresentou numa suave espuma, emulsionada com o saboroso azeite biológico Olmais.
Bruno Rocha acrescentou ainda delicadas notas a estragão e anis, provenientes da inula e do funcho do mar, este último o apontamento verde do prato.
Tendo finalizado a complexa e original composição com dois raros e autóctones grãos-de-bico pretos... e, ainda, com grão-de-café moído, que serve de acelerador de tempero e intensificador de sabores.
Excelente!
Atum curado, fumado e seco, língua de vitela, espuma da batata [Bruno Rocha]
O prato de carne propriamente dito ficou a cargo de… Paulo Matias!
Com efeito, o objetivo deste jantar interpretativo não era trazer à Lousã o peixe ao sal do Guincho, era antes permitir ao chefe do PORTO DE SANTA MARIA sair da sua zona de conforto e fazer um prato experimental, diferente, inspirado por tudo aquilo que a Lousã é!
E assim foi!
Pelo que Paulo Matias, para preparar o seu prato de carne, pediu à organização um “Baga Velho” – queria cozinhar com um tinto que tivesse evolução e oxidação… mas ainda com taninos vivos!
Tendo a escolha recaído num clássico das Caves São João, o Frei João Reserva… da colheita de 2001!
Para cozinhar o prato de carne…
… Paulo Matias pediu à organização um “Baga Velho”
Frei João Reserva Tinto 2001
No centro do prato, o javali da Serra da Lousã.
Delicioso e com imenso sabor, Paulo Matias trabalhou-o com alho negro e castanhas. E com o Baga de 2001.
Mais a frescura do puré de funcho.
E o sabor intenso do toucinho de porco fumado.
Tendo o chef do PORTO DE SANTA MARIA juntado cinco vegetais, trabalhados de formas diversas: salsify escalfado no vinho tinto Frei João Reserva de 2001; cenoura roxa assada; cenoura laranja salteada; alcachofra assada; e cebolo salteado.
E também três rodelas de uma variedade de beterraba levemente picante.
Bem como um crocante de cogumelos.
E ainda um gel de mirtilos, feito igualmente com o Frei João.
Complexo e arriscado, foi um prato que Paulo Matias construiu a pouco e pouco, com os vários elementos que ia recolhendo nas várias visitas que fez à vila e à serra da Lousã.
Excelente!
Lombinhos de javali e toucinho fumado, legumes da terra, molho de vinho tinto e estaladiço de cogumelos [Paulo Matias]
A sobremesa ficou por conta de Bruno Rocha, um daqueles poucos chefes – não apenas em Portugal como por esse mundo fora – que não precisa de um pasteleiro por perto, conseguindo manter igualmente nos doces o alto nível que alcança nos salgados.
Foi uma homenagem aos aromas e aos sabores da Serra da Lousã!
Sendo também, aliás, uma evocação da serra igualmente do ponto de vista cromático – o castanho e o verde, das árvores; o avermelhado, dos frutos silvestres; e o branco, da neblina que cobre a Lousã.
O parfait é de pinheiro – feito com agulhas recolhidas dois dias antes, no interior da floresta e no topo das árvores, com a ajuda de um madeireiro local.
Tendo por cima um gel também de pinheiro, que Bruno Rocha trabalhou com maçã fermentada.
Ao lado, requeijão fresco e queijo curado, ambos de cabra.
E depois um gelado cremoso de maçã reineta assada com o Vinho do Porto Bulas Vintage de 2012, que lhe dá a cor, e com canela.
O qual está assente num crumble de leite, com notas salgadas que equilibram o doce do gelado.
Tendo ao lado a rama do funcho fresco… cristalizada.
E, por fim, as micro folhas de chagas que, para além de trazerem o verde da Serra da Lousã, acrescentam notas picantes à sobremesa.
Excelente!
Bruno Rocha…
… e a rama do funcho cristalizada
Pinheiro, maçã reineta, queijo de cabra e funcho [Bruno Rocha]
Relativamente à harmonização vínica, os ravioli de foie gras com aveludado de sardinha, de Paulo Matias, foram acompanhados pelo jovem e frutado Bulas Branco de 2015, um lote feito com Malvasia, Viosinho, Códega de Larinho e Rabigato Moreno.
O Bulas da colheita de 2013 produzido exclusivamente com castas tradicionais do Douro – Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinto Cão e Sousão – foi o escolhido para dar luta ao atum e à língua de vaca de Bruno Rocha.
E os lombinhos de javali de Paulo Matias tiveram a companhia do Bulas Grande Reserva Tinto de 2010, feito maioritariamente com uvas provenientes de vinhas velhas – só um quarto do lote é que tinha Touriga Nacional mais recente – tendo depois estagiado um ano em barricas de carvalho francês.
Bulas Branco 2015 / Bulas Tinto 2013 / Bulas Grande Reserva Tinto 2010
Já para acompanhar a sobremesa de Bruno Rocha, o escanção Tiago Silva abriu e decantou o extraordinário Vinho do Porto Vintage Bulas de 2012, produzido a partir das melhores uvas da Quinta da Foz Ceira e da Quinta da Costa de Baixo.
Escanção Tiago Silva e o Bulas Porto Vintage 2012
Foi o final de um grande evento na vila da Lousã, fruto da iniciativa de José Gomes.
Paulo Teixeira de Carvalho, Paulo Matias, Bruno Rocha, Miguel Silva, José Gomes
Em que, através da Gastronomia, se celebrou a História e a Identidade do território da vila e da serra... da Lousã!
José Gomes e a equipa de cozinha
Tendo sido um memorável jantar experimental, criativo e original, de altíssimo nível, que Bruno Rocha e Paulo Matias, sem rede e sem quaisquer preocupações comerciais, arriscaram transformar numa experiência única e irrepetível.
Muitos parabéns aos dois pela coragem, pela paixão e pelo desprendimento.
Foi um privilégio testemunhar esta entrega à Lousã!
Na cozinha do Palácio da Lousã, Paulo Matias & Bruno Rocha
Fotografias: Raul Lufinha e Marta Felino
A VISCONDESSA | Palácio da Lousã Boutique Hotel, Rua Viscondessa do Espinhal, Lousã, Portugal
Chef Miguel Silva
FLORES DO BAIRRO | Bairro Alto Hotel, Praça Luís de Camões, 2, Lisboa, Portugal
Chef Bruno Rocha
PORTO DE SANTA MARIA | Praia da Cresmina, Estrada do Guincho, Cascais, Portugal
Chef Paulo Matias
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