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Não é “estagnação”, é a profunda vitória dos nórdicos

por Raul Lufinha, em 11.12.19

Chef René Redzepi na cozinha de testes do antigo NOMA (2013)

Chef René Redzepi na cozinha de testes do antigo NOMA (2013)

Num artigo publicado originalmente na edição de novembro de 2019 da Revista de Vinhos e agora disponível também no blog Mesa Marcada, Duarte Calvão começa por fazer o ponto da situação atual da cozinha:

«Parece claro que a cozinha atravessa a nível mundial um momento de estagnação. Depois da revolução da vanguarda espanhola do final dos anos 90, início dos anos 2000, do espalhar da sua influência um pouco por todo o mundo, não só a nível de técnicas, mas sobretudo de modo de encarar a cozinha, nada de muito excitante aconteceu depois. Alguns deixaram-se iludir com a “cozinha nórdica”, que, já passados uns anos, mostra que apenas legou uma maior importância dada aos vegetais e uma pretensa “simplicidade”, além da moda de chefes a vaguear pelos bosques em busca de ervinhas ou de panegíricos à “pureza” dos produtos locais, estejam na selva amazónica, nos mangais asiáticos ou nas florestas escandinavas. De preferência, todos fermentados, maturados ou defumados até à loucura».

Para depois continuar:

«A revolução da vanguarda espanhola, que tinha sido antecedida pela grande revolução da Nouvelle Cuisine de finais dos anos 60 e início dos 70 - centralizada inicialmente em França -, deixou-nos viciados em mudança, em novidade, em tentar descobrir em cada chefe um “revolucionário” que nos iria deslumbrar com as suas criações. Mas tudo indica que nada vai acontecer nos tempos mais próximos. De facto, como já escrevi anteriormente, os chefes parecem mais interessados em aparecer ligados a movimentos ambientais e sociais que lhes trazem “boa imprensa” do que em fazer evoluir a sua cozinha em termos de criatividade. Ou então em abrir segundos ou terceiros (quartos, quintos, o céu é o limite...) restaurantes, mesmo em locais longínquos, seja Singapura, Dubai ou Las Vegas».

E o texto continua num cativante registo – exagerada e provocadoramente caricatural – que merece ser lido até ao fim.

Mas o ponto que nos interessa realçar, e que não pode merecer a nossa concordância, é o facto de Duarte Calvão – mais uma vez – alinhar pelo discurso espanhol de sistemática desvalorização da cozinha que destronou a cozinha espanhola, ou seja, pelo discurso espanhol de sistemática desvalorização da Nova Cozinha Nórdica.

Claro que os espanhóis não gostam dela.

Mas aquilo a que assistimos atualmente a nível mundial não é «um momento de estagnação», é antes uma profunda vitória da Nova Cozinha Nórdica.

Ou, dito de outra forma, a emergência da Nova Cozinha Nórdica, com a sua desarmante simplicidade, levou ao esgotamento da dita vanguarda espanhola.

Sendo a vitória dos nórdicos de tal forma profunda que – passados tantos anos – até parece que não está a acontecer nada.

Mas está!

E muito!

A revolução nórdica foi de tal forma impactante que entretanto – para surpresa dos próprios nórdicos – os seus princípios ultrapassaram o território nórdico… e foram assimilados pelas cozinhas locais não-nórdicas como sendo princípios seus!

Na verdade, o triunfo da Nova Cozinha Nórdica foi tão grande que as outras cozinhas – incluindo a portuguesa (!) – assumiram como seus os princípios nórdicos… e passaram a aplicá-los ao seu próprio território!

Passaram a aplicá-los ao seu próprio território… e assumem-nos como sendo (não nórdicos mas) seus!

E que princípios são esses?

São os de 2004, criados por um conjunto de chefes – liderados pelo duo que tinha aberto no ano anterior um restaurante chamado NOMA (cujo nome junta as iniciais de “Nordisk Mad”, “comida nórdica”) nas docas de Copenhaga, Claus Meyer e René Redzepi – e resumidos num manifesto de dez pontos.

«The Manifesto for the New Nordic Kitchen:

1. To express the purity, freshness, simplicity and ethics that we would like to associate with our region

2. To reflect the different seasons in the meals

3. To base cooking on raw materials which characteristics are especially excellent in our climate, landscape and waters

4. To combine the demand for good taste in food with modern knowledge about health and well-being

5. To promote the Nordic products and the variety of Nordic producers and to disseminate the knowledge of the cultures behind them

6. To promote the welfare of the animals and a sound production in the sea and in the cultivated as well as wild landscapes

7. To develop new possible applications of traditional Nordic food products

8. To combine the best Nordic cooking procedures and culinary traditions with impulses from outside

9. To combine local self-sufficiency with regional exchange of high-quality goods

10. To cooperate with representatives of consumers, other cooking craftsmen, agriculture, fishing industry, food industry, retail and wholesale industry, researchers, teachers, politicians and authorities on this joint project to the benefit and advantage of all in the Nordic countries»

O objetivo era simplesmente o de criar uma identidade gastronómica na Escandinávia, à semelhança do que acontecia nomeadamente no sul da Europa com a cozinha mediterrânica.

Sendo os princípios bastante genéricos – aliás, ao contrário do que muita gente pensa, nem sequer abordam técnicas culinárias. Ou seja, os famosos fermentados, que tanto associamos aos nórdicos, não fazem parte da essência nem estão na génese da Nova Cozinha Nórdica.

De qualquer forma, como é óbvio, estes princípios não nascem de geração espontânea. Tudo é construído a partir do que já existe. Há muito tempo que, por exemplo, Ducasse já falava de “produto” e de “terroir”. E a grande influência terá sido Thomas Keller, com quem René Redzepi trabalhou no THE FRENCH LAUNDRY, em Napa Valley, na Califórnia.

Embora a grande novidade do manifesto da Nova Cozinha Nórdica não tenha sido tanto a de coligir todos estes princípios, foi muito mais a de os aplicar a um território concreto.

E depois, claro, o que deu projeção e massa crítica ao manifesto foi no ano seguinte, em 2005, os ministros do Nordic Council (que engloba a Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia, Ilhas Faroé, Gronelândia e Ilhas de Alanda) terem adotado o manifesto como base e ideologia do “New Nordic Food Programme”, canalizando mais de três milhões de euros para programas que concretizaram na prática todos estes princípios.

Ora, como a revolução da Nova Cozinha Nórdica foi um sucesso a nível mundial, o passo seguinte foi os chefes e os empresários replicarem o modelo nórdico nos seus próprios países, transpondo esses princípios e essas práticas para o seu território e adotando-os como seus.

Os princípios estão tão corretos que foram desligados do seu território original… e transpostos para outros territórios não-nórdicos.

De tal forma que hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando falamos em produto, em matéria-prima, em “matéria” (como o chef João Rodrigues lhe gosta de chamar) isso é o triunfo dos nórdicos. Quando falamos de produto português, isso é o triunfo dos nórdicos. As pessoas até podem pensar que estão apenas a falar de produto português – e estão. Mas estão também a replicar o que os nórdicos fizeram com sucesso na Escandinávia. Estão a transpor para a realidade portuguesa o bem-sucedido exemplo da Nova Cozinha Nórdica (de só utilizar produtos locais).

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos os produtos da estação, isso é o triunfo dos nórdicos.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando recusamos o sushi criativo com sabor, por exemplo, a morangos com chantilly e preferimos o sushi tradicional – que sabe mesmo a peixe e ao avinagrado arroz – isso é o triunfo dos nórdicos. Claro que os japoneses sempre o fizeram assim. Mas nós passámos a gostar dele dessa forma porque assimilámos os princípios da Nova Cozinha Nórdica.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos pães e bolos com fermentações longas, isso é o triunfo dos nórdicos.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos vinhos naturais, isso é o triunfo dos nórdicos.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos a cerveja das microcervejeiras, isso é o triunfo dos nórdicos.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos os queijos e os enchidos artesanais e de pequenos produtores, isso é o triunfo dos nórdicos.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos uma alimentação saudável, isso é o triunfo dos nórdicos. Os nórdicos levam várias décadas de avanço no desenvolvimento da agricultura e da pecuária biológica.

Hoje em dia, já nem nos damos conta mas, quando preferimos práticas sustentáveis e que combatem o desperdício, isso é o triunfo dos nórdicos.

De facto, a vitória da Nova Cozinha Nórdica foi tão profunda que a revolução de 2004 deu lugar, como agora se diz, a um novo normal, que até parece ter existido desde sempre. E nalguns casos sim, são coisas tão óbvias que é claro que já vêm de trás. Mas foi o impacto da revolução da Nova Cozinha Nórdica que as impôs e, mais importante ainda, que as generalizou às outras cozinhas, um pouco por todo o mundo.

Agora estamos a replicar nos nossos territórios e à nossa medida aquilo que foi feito nos territórios nórdicos após a revolução da Nova Cozinha Nórdica.

Não é “estagnação”.

É uma profunda vitória dos nórdicos!

Fotografia: Marta Felino

 

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publicado às 02:06



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